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2 de dezembro de 2007

A Dança de Shiva

A Dança de Shiva

por Sérgio Pereira Alves

Um dos pontos centrais da teoria Junguiana é o processo de individuação, e quando é citado sempre surgem algumas questões a respeito de aspectos negativos presentes neste processo os quais eu gostaria de evidenciar no momento.


O processo de individuação ou de transformação interna nos leva sempre a um questionamento e conseqüente conscientização de determinadas partes escondidas de nossa psique assim como nos aproxima mais de nossa verdadeira essência. Isso o transforma numa grandeza imensurável cujo contato se faz difícil e na maioria das vezes muito doloroso de se enfrentar.


O auto-conhecimento que nos conduz à profundezas inesperadas e a um reconhecimento de nosso lado sombrio tem força suficiente para desencadear perturbações geradoras de problemas e conseqüente mudanças de personalidade que jamais poderíamos prever. O confronto com situações conflituosas provenientes do inconsciente requer intencionalidade e inteireza no propósito, pois simplesmente não podemos amenizar o sofrimento deste contato com desculpas ilusórias ou explicações cômodas. Desta forma só estaríamos ampliando, em muito, as possibilidades destrutivas existentes.


O inconsciente é de natureza amoral, e é dele que se apresenta o que for necessário para nos desapegarmos dos agregados ilusórios do ego, resultando em um crescimento em direção à uma consciência mais ampla. E isto não é tarefa fácil, pois dificilmente abriremos mão do que somos, de nossas identificações, para aceitarmos uma posição, uma perspectiva ou um jeito novo que em geral nos é totalmente desconhecido e oposto a nós.


Daí surge a necessidade de um trabalho psicoterapêutico onde a análise junguiana se caracteriza pelo confronto dialético entre consciência e inconsciente. E nossa individuação se faz percebida pela tomada de consciência de componentes de nossa personalidade, que originariamente apresenta sintomas negativos, aos quais Jung denominou de sombra.


Quando damos uma atenção especial às nossas questões internas, vamos de encontro a esta personalidade inferior, onde está contido tudo que não se encaixa, que não procede. Tudo que não se ajusta às leis e regras de nossa vida consciente. Na realidade, tudo que é esquecido ou rejeitado não só por motivos de ordem moral como também por conveniências inconseqüentes. Em resumo, todas aquelas pequenas e insignificantes imposições as quais somos condicionados deste pequenos, tais como: 'mamãe não gosta' ou 'papai do céu acha feio' ; e todas as demais características que somos levados a nos identificar para melhor sermos aceitos no meio onde crescemos.


Na verdade todo o nosso inconsciente é a nossa própria sombra quando o contrapomos à consciência representada pela luz, ou ainda, quando tomamos uma postura de distanciamento, rejeição ou medo, em relação aos conteúdos desse inconsciente, ou melhor dizendo, de nós mesmos.


O que caracteriza alguma coisa como pertencente à sombra é exatamente a nossa postura em relação à ela ou a forma como reagimos à estes conteúdos. As diferentes perspectivas, pelas quais vemos determinados conflitos internos, surgem a partir de influências de nossas próprias emoções que nos farão lidar com tais conflitos de maneira agradável e simples, ou desagradável e autodestrutiva.


Normalmente nos livramos dos aspectos desta metade obscura de nossa alma usando de artifícios onde atribuímos aos outros o que é feio, preconceituoso e esquisito. Ou às vezes, para nos sentirmos salvos ou isentos de pecados, os transferimos para um mediador divino através de um ato de arrependimento. Jung dizia que sem pecado não há arrependimento, e sem arrependimento não há o ato de redenção. Somente através de uma análise profunda é que podemos nos confrontar com esta metade obscura da personalidade, pois uma vez iniciado o processo, torna-se inevitável esse contato e na maioria das vezes, muito doloroso.

Este é um momento psicológico onde não há outra alternativa; somos expulsos do paraíso. Nos restando apenas suportar com paciência, coragem e confiança até que ocorra uma solução, uma mudança de paradigma, no devido momento. Nem antes e nem depois.


E quando nos aventuramos por um passeio por este inferno dantesco, i.e., quando tentamos entender o que nosso inconsciente produz, o caminho mais direto e natural seria permitir à nossa alma um curso livre, através de um recuo de nossas projeções internas, sem interferências do ego. Modelando a realidade que nos circunda com uma concepção mais realista da vida e, livre de ilusões. Agindo dentro do que é certo, em cada momento, de acordo com o que temos disponível, com o que somos, para que não se permita que forças maléficas se tornem explicitamente excessivas.


Uma vez que corrigimos estas projeções, ou seja, que separamos a realidade, das camadas de ilusão que a envolvem, nos aproximamos de limites perigosos onde ultrapassá-los significaria um empreendimento muito difícil, Pois estes limites representam verdades específicas de um momento psicológico que normalmente preferimos evitar. Se obstáculos existem, é porque eles devem ter alguma serventia, e talvez encubram algum recanto delicado com uma escuridão que às vezes é salutar. Determinados aspectos que talvez fosse muito mais tranqüilo que jamais viessem à luz.


Estas mudanças decorrentes desta experiência interna são tão profundas que possuem um caráter numinoso, i.e., somos compelidos a achar que elas representam uma vontade de Deus. Isto é devido ao caráter autônomo dos símbolos que surgem, pois o caminho ou a solução para os conflitos se apresenta com um impacto tão grande que nos fazem entender esta força resultante desta maneira.


Estes símbolos, que possuem os opostos representados em si, são manifestações de um ponto central que representa a totalidade, o Uno e acabam funcionando como um Senhor do Mundo Interior, portando em sua estrutura, luz e trevas.


Os primitivos talvez tivessem alguma percepção desta grandeza, pois em seus rituais representavam o sol como Deus-Pai. Fecundador e criador, fonte de toda energia do mundo. O sol não só é benfazejo como também destruidor com seu calor abrasador. Ele brilha igualmente para todos, bons e maus. E faz crescer tanto vidas úteis quanto nefastas. Todas estas características o tornam adequado para representar o Deus visível deste mundo, nossa força propulsora, a libido cuja essência é produzir a nossa realidade.


Em culturas diferentes, existem infinitas outras representações para simbolizar este arquétipo central da totalidade portador do bem e do mal. Na mitologia hindu encontramos Shiva que dispôs de uma metade de seu corpo para servir de morada para sua consorte, Parvati. Esta é uma magnífica representação deste mistério da união de opostos que simboliza a essência da iluminação. Neste padrão hindu de Deus-Shiva e sua Shakti se encontra o poder procriador da substância imortal, fonte de toda a vida.


Na iconografia Tibetana encontramos a mesma representação na imagem de Vajradhara e sua contraparte feminina, estreitamente abraçados numa formação conhecida como 'yab-yum'. Aqui as duas figuras se fundem uma na outra em suprema concentração à absorção. Sentados num trono de Lotus que simboliza o Portal do Universo, em régia atitude de calma imortal. As imagens de Shiva-Shakti simbolizam a vida universal e individual como uma incessante interação de opostos cooperantes.


Uma outra representação de Shiva relativa a um outro par de opostos começou a surgir na Índia com a invasão dos povos árias do norte. Eles possuíam uma coletânea de hinos chamados RigVedas, em sanscrito primitivo, usado quando se ofereciam os sacrifícios Arianos. Ali, Shiva conhecido como Rudra, O Terrífico, era uma divindade menor a qual os devotos se dirigiam em apenas três hinos. Sob o nome de Shiva, mais tarde, esta divindade vem a se transformar em um dos três principais Deuses do panteão hindu, depois de absorver algumas características de um Deus da Fertilidade indígena. Neste momento se configurou a trindade constituída por Vishnu, significando existência, luz, concentração e preservação. Shiva como representante de aniquilamento, trevas, dispersão e destruição. E Brahma , no centro, com eixo de equilíbrio.


Shiva depois de passar, como Rudra, por características sinistras, misteriosas e associadas às funções destrutivas, se apresenta plenamente desenvolvido, combinando características contrastantes . Como Mahakala ele é o grande deus do tempo infinito, que tudo destroi. Com um aspecto oposto, ele é Pashupati, o senhor de toda a criação. Contam que a terra estava ficando desolada e foram pedir a Vishnu que despejasse sobre a terra o rio cósmico Ganga, para restaurar toda a vida do planeta. Acontece que este rio tinha uma força torrencial que se caísse sobre a terra, destruiria tudo, a faria em pedaços. Shiva, ao saber, amparou o rio em sua cabeça, e pela água que lhe escorriam pelo seus longos cabelos negros surgiram os veios que deram origem ao Rio Ganga (Ganges) que possui exatamente esta função restauradora e purificadora.


Shiva é ainda Nilakanta , O Garganta Azul. Dizem que a serpente Vasuki espalhou sobre o universo um veneno que o ameaçava de destruição. Os Devas e Asuras que não podiam lidar com tamanho problema, recorreram a Shiva que bebeu o veneno livrando todo o universo de ser destruído.


Já como Nataraja - O Senhor da Dança, Shiva possui os dois aspectos: destruidor e criador. Na reclusão de sua morada, no alto do Monte Kailasa nos Himalaias, Shiva dança. E ao executar este ritual ele revolve toda a neve sob seus pés, e à sua volta. Assim enquanto dança ele destroi o universo. Mas a neve remexida pela dança se derrete e começa a formar um pequeno filete de água que desce as montanhas formando pequenos veios que mais abaixo se transforma numa volumosa fonte de vida que é o Rio Ganga.


Shiva é ainda Ashutosha - 'Aquele que se basta', o Senhor do Desapego. Aceita de bom grado o que lhe é oferecido valorizando desse modo, mais a intenção do que o objeto oferecido.


Como uma lembrança do que é impermanente ou da constante mudança, Shiva é Akasha - o éter, o sem forma. Os fiéis de Shiva neste estado o veneram em ritos usando uma pedra normalmente colhida no Rio Ganga ou no Rio Gandaki no Nepal, para representar a sua imagem sem forma. E transcendendo o estado de Akasha encontramos a 'consciência pura'.


Com todas estas manifestações através das formas e da não-forma, de sua dança através dos tempos, encontramos nos Svetasvattara Upanishads uma menção sobre "este Deus (que) é o artesão do Universo, o Ser Supremo. (Ele) mora eternamente no coração das criaturas". E ainda é dito que "quando não há trevas, não há nem dia nem noite, nem ser nem não-ser, então (este) é Shiva , o Absoluto, é o Imperecível".


Para que os devotos lidem com todas estas representações, é pedido a eles que adorem não os nomes e as formas, mas o dinamismo, a torrencial corrente cósmica de fugazes evoluções, que continuamente produz e aniquila as existências individuais; como gotas de uma poderosa queda d'água. O indivíduo passa a ter uma atitude, identificando sua mente com o princípio que lhe dá existência. Que o lança para dentro de um processo de crescimento, eliminando as contradições existentes em seu caminho. Assim ele se sente como parte desta força suprema. Tanto os pesares quanto as alegrias são transcendidas na entrada em um estado puro, livre de opostos.


Assim como em todo este simbolismo védico, as estruturas psicológicas contém secretamente o seu oposto, ou está de alguma forma ligado à ele. E não existe nenhum ritual, ou momento psicológico, que não se converta em seu oposto quando se toma uma posição extrema. Quanto mais tomamos uma atitude unilateral, tanto mais podemos esperar sua reversão para o seu contrário. Isto é chamado enantiodromia.

Portanto todas as nossas qualidades e características das quais mais gostamos e defendemos são as mais ameaçadas com certa perversão diabólica. Pois são exatamente elas que mais reprimem o mal.


O autoconhecimento é uma aventura que nos conduz a amplidões e profundezas inesperadas, sendo sempre muito doloroso desencadearmos perturbações difíceis de se administrar. Nossa existência individual se caracteriza por uma relação entre a alma livre, pura e perfeita, e as ilusões do mundo exterior. Mas sempre poderemos transcender à estes obstáculos temporais e a todos os nossos apegos para conseguirmos discernir a realidade aparte das camadas de ilusão que a envolvem.


Para a psicologia moderna, com este empreendimento estaremos sempre lidando com a vida e a morte da consciência comum, para dar lugar ao surgimento de uma consciência superior. Num confronto com a sombra, que apesar de sinistro e inevitável, é o que nos projeta para a individuação.


E, sempre que olho para lugares ermos do inconsciente, vejo Shiva. No topo do Monte Kailasa. Pronto para começar a sua dança.

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